Marcus Vinicius Furtado Coêlho
Neste domingo, 5 de outubro, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 completa mais um aniversário. Há mais de três décadas, o constituinte originário inaugurou um novo marco civilizatório, estabelecendo um catálogo robusto de direitos fundamentais e organizando as bases de um Estado Democrático de Direito. Contudo, a mera existência de uma Constituição escrita não assegura, por si só, a efetividade de seus preceitos. É preciso desenvolver uma verdadeira mentalidade constitucional, capaz de transformar o texto normativo em prática social e em cultura política.
Hans Kelsen, ao propor a sua “Teoria Pura do Direito”, já advertia que a norma jurídica exige concretização em um sistema hierárquico que se sustenta pela crença coletiva em sua validade (Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999). Do mesmo modo, Peter Häberle lembra que a Constituição é, antes de tudo, uma “cultura aberta”, que depende da interpretação plural de seus destinatários para ganhar vida no cotidiano democrático (Häberle, Peter. Hermenêutica Constitucional — A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997).
A “mentalidade constitucional”, nesse contexto, significa compreender a Carta não como barreira ao desenvolvimento, mas como pacto normativo de legitimidade. Como ensinava José Afonso da Silva, a Constituição é o “estatuto jurídico do político”, e não pode ser reduzida a um ornamento retórico, sob pena de se esvaziar o próprio Estado de Direito (Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2022).
A mentalidade constitucional não se resume a conhecer os direitos e deveres inscritos na Carta. Exige vivê-los. É respeitar a dignidade do outro no cotidiano, é praticar a tolerância, é rejeitar o autoritarismo mesmo quando se apresenta de maneira sedutora ou conveniente. É defender as instituições democráticas não apenas quando elas servem aos nossos interesses, mas também quando garantem espaço e voz àqueles que pensam diferente de nós.
A Constituição de 1988 permanece sendo um projeto em constante realização. A cada 5 de outubro, somos lembrados de que o êxito da experiência democrática não se mede apenas pelo número de emendas promulgadas ou pela estabilidade institucional, mas pela consciência coletiva de que o constitucionalismo é compromisso diário. A democracia não se sustenta apenas em textos, mas em atitudes; não apenas em instituições, mas em práticas sociais.
Nesse sentido, é oportuno recordar que Ruy Barbosa já advertia que “a pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer” (Oração aos Moços, 1920). Essa lição reforça a necessidade de que cada poder, cada cidadão e cada intérprete assumam, como ethos, a ideia de autocontenção, diálogo institucional e respeito à moldura constitucional. E isso não significa omissão diante de violações de direitos, mas que cada poder deve atuar nos limites de suas capacidades institucionais e competências.
É verdade que nossa trajetória constitucional não foi linear. Avançamos em muitos pontos, mas ainda carregamos déficits de efetividade, sobretudo no campo da igualdade social. É precisamente aí que a mentalidade constitucional deve se afirmar com vigor: não apenas como reverência formal ao texto, mas como compromisso ético em transformar seus princípios em realidade palpável.
É também da lavra do grande Ruy Barbosa, em sua conferência “A Questão Social e Política no Brasil”, a contundente afirmação de que “as Constituições não podem continuar a ser utilizadas como instrumentos, com que se privem dos seus direitos aqueles mesmos, que elas eram destinadas a proteger, e que mais lhes necessitam da proteção”.
Defender a Constituição em um tempo de polarização e incertezas, significa defender o espaço comum da democracia, onde divergências podem coexistir sem se tornarem inimigas da convivência. Significa reafirmar que os direitos fundamentais não são concessões, mas conquistas civilizatórias que não podem ser relativizadas ao sabor das crises ou das maiorias ocasionais.
Celebrar a Constituição de 1988, portanto, é celebrar o esforço coletivo por uma sociedade livre, justa e solidária. Mas é também reafirmar o compromisso de desenvolver, nas novas gerações, a mentalidade constitucional que assegure que o texto da Carta não se converta em letra morta. Como disse Canotilho, “a Constituição só vive se viver na consciência dos cidadãos” (Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003).
Esta data nos inspira não apenas a reverenciar o passado, mas a cultivar, no presente, a cultura constitucional que dará sentido e futuro à nossa democracia. Não há cidadania plena sem mentalidade constitucional. E não há Constituição viva sem cidadãos dispostos a defendê-la, respeitá-la e praticá-la.